Sherazades


SHERAZADES

 

Caroline Cassiana Silva dos Santos

 

Peço licença a você, leitor, para contar minha história. Devo contá-la para justificar minhas escolhas, explicar meus desencontros ou, quem sabe, seguir enganando a morte, fazendo perenar um pouco do que os quase trinta anos de vida deixaram marcados no rosto e no peito. Sim, como Sherazade gostaria de encantá-lo com histórias que nunca acabam, mas acredito em minha pouca maestria e imagino o quanto isso poderá enfadá-lo. Bem, pescoço a prêmio, sigo a contar, começando pela minha origem, pela primeira das muitas histórias que me habitaram e que me deram coragem para que eu contasse, agora, a minha.

Sherazade conta que nasci num domingo quente e poeirento de outubro. Vive a me lembrar que passou o dia inteiro com dores nos quartos, ansiosa por ter nos braços seu primeiro filho, e que ao me ver, roxinha por ter passado da hora de nascer, chorou sua primeira longa história. Sua sina estava dada: tecer ao redor da cria um cobertor de lágrimas e risos, algo que me aqueceria sempre que precisasse.

Ternamente despótica, essa mulher fazia cumprir suas leis em casa: entre um safanão e um afago, me fez conhecer as primeiras letras e com elas a liberdade para ler seus manuais de costura, zelosamente guardados dos dedos infantis. A tabuada ficava para os domingos, os livros da escola para todas as tardes depois do almoço. Sobrava o sonho da noite e com ele lobos e princesas que duelavam para saber quanto era sete vezes oito.

Parcialmente abertos, meus olhos, aos catorze anos, viram Sherazade, a outra, no novo colégio. Mãos gordas, nariz grande e cabelo sempre preso em coque, mais parecia uma velha bruxa embora as espinhas no rosto revelassem sua idade. Como um cavalheiro, me fez a corte, na frente dos demais colegas da classe, e me chamou para ir à biblioteca do bairro que ela já conhecia. Era a primeira vez que alguém me chamava para sair e com as pernas bambeantes disse sim. No caminho, me contou que gostava muito de esoterismo, gnomos, magia. Eu revelei que gostava de histórias de amor. “Bobagem!” – ela replicou – “O mundo é muito mais que isso”. A bruxa era ela: Sherazade estava com razão.

De ônibus ou de vassoura, com ela conheci algumas das bibliotecas vizinhas ao nosso bairro. E porque líamos e porque o mundo era maior que nossas casas, pela primeira vez, parti.

Nunca atinei a razão, mas deixei colo e hálito quentes para trás. O que me enfeitiçava era a lonjura dos caminhos a percorrer e, quem sabe, a surpresa do fim. Era um vasto mundo, mas de moradas parecidas: corri a conhecer gentes como eu, de olhos ainda pouco abertos e coração palpitante.

E conheci.

Soube que seu pai fazia selas de montaria e com couro tinha feito a pele da filha, a Sherazade alada como os unicórnios. Ora fada, ora bruxa, ela se alimentava de livros infantis e me fez adentrar no seu reino. Nele, à beira dos tachos borbulhantes dos doces de milho, reunia seu séquito: mães, filhas, tias e alunas contavam, riam, liam, choraram lágrimas que salgavam o doce... “Ora, mas pamonha pode ser salgada, não? Deixe a menina chorar...”, dizia, emendando outra história.

Partidas se tornaram uma constante em minha vida. Voltar para casa, por outro lado, a primeira casa em que vivi, foi doloroso. Ver o mundo e voltar para o ninho... “Em minha casa, quem manda sou eu!” – bradava o pernambucano, vermelho e agitado por perceber que asas brotavam também minha cabeça e pés. Firme, esse homem usava de sua peixeira para extirpá-las. Esforço inútil. Corte bruto na raiz, novo broto se formando. Mas essa luta me cansava e me deixei ficar por um tempo, o suficiente para saber que uma doença lhe comia as vísceras e que o negrume de Sherazade, a ceifadeira, escurecia nossos olhos.

Ceifar o trigo e fazer o pão. Alimentar as bocas de gente que tem fome. Para isso, o pernambucano da peixeira viveu, para quebrar pedras, ceifar trigos e alimentar sua prole. Em troca, queria apenas que estudássemos e com que orgulho, peito estufado de ave, viu a primeira filha se formar.

Ceifar vidas e tirar o pão. Assim esta Sherazade sobrevive. Seu corpo se alimenta das histórias de quem não mais as contará, embora as suas venham carregadas de tristuras.

Egoísta, Sherazade quis para si a ternura e a dureza das histórias que o homem do Capibaribe contava aos filhos. Egoísta, ceifou para si um pedaço desta minha pequena vida.

As histórias contadas pela morte me deram coragem para desvelar o mundo. Nômade, cruzei uma São Paulo desértica em busca de um oásis um pouco mais ao sul. Como coordenar uma escola sem ter modelos de coordenação? Em quem me espelhar para criar um pouco da profissional que deveria ser?

Num dia qualquer da semana em que faltava a luz na escola, sentada sozinha, já cansada de esfregar lâmpadas para ter desejos satisfeitos, minha Sherazade de calças, bojudo e de voz grossa apareceu. Em uma manhã me contou sobre sua vida, sua militância política, seu trabalho nas periferias do mundo, sobre a educação do olhar, sobre poesia.

Dos diálogos, da repreensão e do pastel às quintas, muita coisa ficou gravada na alma. Modelo? Hum...talvez a única certeza era de que a poesia pudesse orientar meu trabalho. Talvez, ela pudesse me salvar.

Tomei para mim a poesia das palavras como escudo: a cada investida contra as coisas que pensava ou sonhava, era com ela que me defendia.

Agora, uso a poesia das palavras como espada: decepo cabeças, rasgo ventres, transpasso almas...Descobri o poder que a palavra pode ter para mudar; mudar muito ou mudar pouco o duro caminho que todos fazem e que estou também a fazer. E como se tudo se aclarasse, descubro que seduzindo e, quem sabe, transformando, Sherazade sou eu.

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